quinta-feira, 22 de março de 2007

Arte Poética

Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes uma cara
Nos olha desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.

Também é como rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


Borges, Jorge Luís. O Fazedor. Lisboa: Difel, Difusão Editorial, Lda., 1984. p. 119 - 120

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